No Estado Democrático de Direito, o poder investigatório criminal e as demais funções do sistema de Justiça, como de acusar e julgar, são distribuídas a instituições públicas específicas por meio de decisões dos representantes do povo, inscritas nas Cartas políticas e disciplinadas na legislação correlata.
Apesar da repartição de aludidos poderes no desenho constitucional brasileiro, a viabilizar controle intersubjetivo entre os atores envolvidos, iniciativas via edição de atos normativos infralegais autoconcederam a órgãos ministeriais poder investigatório criminal, forjado na invocação de pretenso poder implícito. Após intensas discussões, em 2015, o STF, em decisão de repercussão geral e não unânime [1], convalidou as investigações criminais instauradas e presididas pelo órgão acusador.
O referendo jurisprudencial gerou insegurança jurídica e uma disfuncional relação entre os órgãos envolvidos, em especial entre acusação e defesa, desencadeando mobilização do Conselho Federal da OAB. Assim, com o intuito de regulamentar a investigação criminal defensiva, diante do impacto direto na paridade de armas e como corolário do direito de defender-se provando [2], editou-se o Provimento 188/2018.
Entretanto, a reavaliação do tema foi suscitada por ministros da Suprema Corte e está agendada para ocorrer a partir do próximo dia 23 de março, data em que devem ser julgadas as ADIs 2.943, 3.309 e 3.318, cenário que retomou o debate indispensável para o aprimoramento do sistema de Justiça criminal.
Logo, trata-se de oportunidade de rever as atribuições do órgão de acusação no processo penal nacional, máxime para compreender o poder investigatório criminal na sua totalidade e não sob perspectiva isolada de uma instituição. A Carta Magna adotou um modelo processual de estrutura acusatória e impôs um sistema de filtros sucessivos na persecução penal [3], dotado de uma variedade de órgãos com papéis bem definidos, de maneira que, se o acusador se confunde com a autoridade investigante, o filtro deixa de existir, com incremento do risco de uma apuração enviesada, fragilizando também o controle da atuação estatal na tutela de direitos fundamentais.
Em síntese, os argumentos contrários à investigação criminal direta pela acusação destacam a inexistência de outorga constitucional explícita e a ausência de previsão em lei federal, em matéria de competência privativa da União [4], conclusão reforçada pelo estudo dos anais da Assembleia Constituinte, na qual citado poder foi negado expressamente ao órgão de acusação, assim como em posteriores tentativas de emenda constitucional, corroborando o silogismo de que, se é poder negado, não cabe falar em suposto poder implícito [5], mas em limite explícito [6].
Soma-se a tais considerações que a legalidade pública retrata preceito normativo positivo, segundo o qual os órgãos e agentes estatais só podem fazer aquilo previsto na lei, fator diverso da legalidade privada, em que o particular pode fazer tudo aquilo que a lei não proíba. Assim, seria insuficiente a ausência de proibição legal para admitir a investigação criminal ministerial, cujo caráter antidemocrático está justamente na atuação para além de uma estrita previsão legal e constitucional [7].
Nesse sentido, alerta Maurício Zanoide de Moraes [8]:
“a teoria dos poderes implícitos não se aplica em temas nos quais a Constituição foi clara ao dividir atribuições. É o caso da leitura de seu artigo 144, no qual está explícita a atribuição de investigação preliminar dos crimes à Polícia Judiciária (Federal e Estadual). Querer utilizar regra de hermenêutica apenas aplicável nas hipóteses de silêncio legislativo em casos em que a Lei Magna é clara, representa tergiversar de modo inconstitucional.”
Em orientação similar, Marcos Alexandre Coelho Zilli[9]:
“constata-se uma insistente tendência em buscar na possibilidade de promoção da ação penal, a possibilidade implícita de se proceder à apuração da infração como se aquela englobasse esta em uma relação de continente e conteúdo. Trata-se de um infeliz reducionismo, reflexo da parêmia popularesca do “quem pode o mais, pode o menos”. Na verdade, investigar, acusar e julgar são ações diversas. Admitir entre elas, por mera comodidade intelectual, uma relação de grandezas, inexoravelmente conduziria à conclusão de que julgar englobaria, também, as demais, o que nos levaria, então, ao restabelecimento do sistema processual inquisitório — por enquanto, uma mera reminiscência histórica.”
Adverte-se ainda que a ausência de lei cria óbice insuperável, diante da ampla discricionariedade na escolha dos casos a serem investigados. Sem lei que determine quais casos podem ser diretamente apurados, fica ao arbítrio do agente escolher o que deseja (ou não) investigar e, não raro, aspectos midiáticos acabam por orientar tal escolha, como casos envolvendo políticos, ricos empresários ou famosos [10]. Mesmo na suspeita de policiais integrarem organizações criminosas, o ordenamento estipula instauração de inquérito policial pela Corregedoria, com acompanhamento por membro do MP (Lei 12.850/13, artigo 2°, §7º).
Alexandre Morais da Rosa e Rômulo Gobbi do Amaral [11] ponderam sobre o arquivamento do PIC da acusação sem ciência dos suspeitos, nem controle por órgão externo, com prazo renovado pelo próprio agente ministerial, além da inexistência de formal indiciamento do investigado, a tolerar um adiamento tático da participação da defesa na investigação preliminar.
Em sentido oposto, Bruno Calabrich e Vladimir Aras [12] sustentam que a investigação penal pelo MP encontraria amparo no artigo 8º, da Lei Complementar 75/93, e no artigo 26, da Lei 8.625/93, que teriam sido regulamentados pela Resolução 181/2017, do CNMP. Contudo, mencionados dispositivos em momento algum atribuem expressamente ao MP apurar infrações penais. Pelo contrário, na seara penal, mencionam apenas as previsões constitucionais de requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial diante da suspeita de ilícito penal (CF, artigo 129, VIII).
Sobre o tema, discorre Delmanto [13]:
“Destarte, de forma ilegal, tanto no plano constitucional (como acima referido) quanto no ordinário (por inexistir lei definindo critérios, impondo limites e permitindo amplo acesso à defesa), membros do Ministério Público têm, literalmente, “escolhido” o que, quando e quem desejam investigar, agindo, portanto, de forma arbitrária, mediante verdadeiras devassas, com abusos em razão do excesso de poder, uma vez que, se o Ministério Público fiscaliza a polícia, ninguém fiscaliza o Ministério Público.
(…) Em que pese hoje vigorar o chavão, de viés populista, de que “quanto mais órgãos públicos puderem investigar, menor a impunidade”, há que se ter muito cuidado com essa ideia. A nosso sentir, se o Ministério Púbico, como parte, pudesse investigar para ver comprovados os fatos que pretende fazer constar de sua denúncia, há sério e palpável risco de provas contrárias, favoráveis ao futuro denunciado, poderão ser preteridas, havendo um enorme desequilíbrio.”
Calabrich e Aras também aduzem que a duração de uma investigação penal depende de lei e não pode ser fixada arbitrariamente pelo STF. Porém, a citada Resolução do CNMP prevê 90 dias, destoando do prazo legal de 30 dias do CPP, para conclusão do inquérito com investigado solto. Enaltecem ainda a ausência de indiciamento na investigação ministerial, por enxergarem no instituto mero rótulo para etiquetar suspeitos e debilitar a presunção de inocência.
Todavia, numa leitura constitucional, o indiciamento deve ser considerado, acima de tudo, um marco a partir do qual o direito de defesa pode e deve ser exercido [14], funcionando como instrumento de incidência tanto de um contraditório possível na dimensão formal, expressa no binômio ciência e participação no inquérito policial, quanto no aspecto substancial, compreendido pela oportunidade de influenciar no rumo da investigação criminal, formulando pedidos e apresentando versões, dados ou argumentos que sejam favoráveis ao indiciado [15].
Malgrado os entraves expostos, ainda que se consinta com a investigação criminal direta pela acusação, esta reclama prévia edição de lei que a regulamente, além de limites, mormente os seguintes: excepcionalidade e subsidiariedade em relação à investigação policial; prevalência da requisição da instauração de inquérito policial sobre a deflagração de investigação ministerial; impossibilidade de bis in idem para rechaçar sobreposição de apurações sobre o mesmo caso e; condução da apuração sob direção ministerial até a sua conclusão, vedada posterior remessa às instituições policiais nas hipóteses de PICs malsucedidos [16].
Outra baliza a ser observada nesse contexto seria de impedir, tal como ocorreu com a proposta de implementação do juiz de garantias na etapa extrajudicial do devido processo, agente do MP que presidir investigação criminal de atuar na ação penal subsequente. Com isso, além de distinguir as autoridades investigante e acusadora, determina-se marco temporal de encerramento dos autos, dando-se início ao prazo para oferecimento de peça acusatória.
A despeito das controvérsias e das decisões jurisprudenciais acerca do poder investigatório criminal no Brasil, o caminho para a efetiva melhoria na apuração de infrações penais não parece ser pela hipertrofia, pela sobreposição e pela usurpação de atribuições de uma ou outra instituição.
Os avanços na qualidade de uma investigação criminal garantista e epistemicamente orientada exigem harmônica integração entre os órgãos, assim como investimentos em recursos humanos e materiais nas instituições constitucionalmente incumbidas dessa missão, com vistas à capacitação de seus agentes respaldada na ciência, sobretudo no âmbito das provas dependentes da memória [18], mediante a adoção de técnicas de entrevista investigativa [19], decisões justificadas [20] e raciocínio abdutivo [21] para formulação e verificação de hipóteses na perscrutação dos casos penais, aliados à constante atualização dos conhecimentos jurídicos e extrajurídicos pertinentes.
Fonte: ConJur
Disponivel em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-11/opiniao-visao-holistica-poder-investigatorio-criminal