O Projeto de Lei da Câmara nº 29, de 2017, é o desdobramento do Projeto de Lei nº 3.555, apresentado pelo então deputado José Eduardo Martins Cardozo (PT-SP) em 2004, propondo uma lei para os contratos de seguro no Brasil. Passei a acompanhá-lo em 2007, quando tramitava na Comissão de Direito Econômico, Indústria e Comércio da Câmara dos Deputados. No ano seguinte, foi aprovado como substitutivo do deputado Leandro Sampaio e, a partir dali, passou a ter outras numerações em razão de arquivamentos e apensamentos: PL 8.034/2010, do deputado Moreira Mendes, e PL 8.290/2014, do deputado Marcos Montes.
Em 13/12/2016, o PL 3.555/2004 passou pela Comissão Especial da Câmara, como substitutivo do deputado Lucas Vergílio, em caráter terminativo. Uma sessão apática, quase vazia, com 16 votos favoráveis [1]. Em 2017, o texto foi enviado ao Senado como Projeto de Lei da Câmara nº 29, ingressando na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Após audiência pública, na qual estive presente, e parecer favorável do senador Rodrigo Pacheco, foi arquivado. Os anos se passaram e, em março de 2023, por força de compromissos pessoais do governo PT, o PLC 29/2017 voltou de repente.
Desde sua origem, o projeto sempre encontrou forte rejeição do mercado e suas instituições, acusado de intervencionismo estatal e protecionismo pró-segurado carregado de interesses unipessoais isolados. Meses atrás, notícia na mídia de que seria aprovado a toque de caixa, sem qualquer modificação, deixou todos de cabelo em pé. Professores, advogados e instituições passaram a reestudar o assunto, e as mais importantes entidades do setor se manifestaram contrárias à versão atual do PLC.
O PL 3.555/2004 teve o mérito de provocar um intenso debate sobre os temas mais relevantes que envolvem os contratos de seguro e resseguro no Brasil, com realização de eventos, publicações e participação de estudiosos nacionais e estrangeiros. Vivenciei esse processo com entusiasmo pelo capítulo dos seguros de responsabilidade civil, que ajudei a redigir. A ideia foi dar mais clareza à função social dessa garantia, integrando o terceiro prejudicado (vítima do sinistro) na disciplina material e processual correspondente [2].
Entretanto, é inegável que ainda existem problemas a serem tratados. A ausência de distinção entre seguros massificados e grandes riscos é uma falha apontada no PL 3.555/2004 pelo jurista português José Carlos Moitinho de Almeida 15 anos atrás [3], omissão injustificável frente à experiência de Portugal, Espanha, França, Alemanha, Argentina, Chile, Colômbia, Peru [4] etc. Essa crítica só aumentou após a Resolução CNSP nº 407/2021, que estabeleceu um regime regulatório mais flexível para determinados seguros classificados pelo órgão regulador na categoria dos grandes riscos [5].
Um ponto bastante problemático é a exigência de aprovação prévia dos produtos pelo Estado. O PL 3.555/2004 dizia que só podem pactuar contratos de seguros companhias que tenham depositado as condições contratuais e as respectivas notas técnicas e atuariais junto à Superintendência de Seguros Privados (Susep). Os projetos 8.034/2010 e 8.290/2014 aumentaram o intervencionismo ao substituir o “depósito” pela “aprovação” das condições contratuais e notas técnicas e atuariais junto ao órgão fiscalizador.
O PLC 29/2017, por sua vez, endureceu mais esse regime ao exigir que tais instrumentos sejam elaborados e aprovados perante o órgão supervisor e fiscalizador de seguros. Observe-se: condições contratuais precisam ser “elaboradas” pela companhia e “aprovadas” pela Susep, o que caminha na contramão [6] do atual Sistema de Registro Eletrônico de Produtos (REP) [7]. Após muita resistência, um recente acordo negociado com o governo e seus interlocutores parece ter retirado essa exigência de aprovação prévia [8].
O capítulo da regulação e liquidação de sinistro merece referência. O relatório do regulador é qualificado como documento comum às partes interessadas (artigo 84). Essa classificação permite que segurados e beneficiários possam acessá-lo, ou exigir sua exibição forçada, para compreender as razões que motivaram eventual negativa de cobertura. De fato, a regulação do sinistro integra a cadeia obrigacional da seguradora e seu relatório constitui peça fundamental desse contrato a lastrear a decisão da companhia dirigida ao segurado ou beneficiário.
Por outro lado, o PLC 29 diz que a seguradora deverá entregar ao segurado ou beneficiário os documentos produzidos ou obtidos durante a regulação e liquidação do sinistro que fundamentem a decisão negativa, com exceção daqueles confidenciais, sigilosos ou que possam causar danos a terceiros, a menos que haja determinação judicial ou arbitral (artigo 86).
Hoje, com visão mais ampla, reconheço ser um exagero. O processamento de uma regulação de sinistro contém intimidades da gestão empresarial, como diálogos entre reguladores, técnicos, empregados, diretores, advogados internos e externos da seguradora, memorandos e opiniões legais, que não podem ser devassados [9]. O que se entende por documento sigiloso e confidencial, ou potencial danoso a terceiros, na linguagem genérica do projeto, tem tudo para ser uma fonte eterna de conflitos. É preciso um limite objetivo: exibição da carta negativa e do relatório final de regulação.
Aliás, essa disposição fazia algum sentido no passado porque os projetos anteriores diziam que o relatório de regulação era documento comum às partes, assim como todos os elementos que tenham sido utilizados para sua elaboração (PL 3.555/2004, 8.034/2010 e 8.290/2014). A segunda parte da mensagem, no entanto, foi retirada do PLC 29, deixando um descasamento entre as disposições. Qual é a necessidade do artigo 84 dizer que o relatório de regulação é documento comum ao segurado, se o artigo 86 esgarça a obrigação exibitória para todos os documentos produzidos ou obtidos durante a regulação e liquidação do sinistro que fundamentem a decisão? Um terreno fértil para a litigiosidade.
Ainda nesse capítulo, existe outro ponto inflamável que veio escalando no tempo: o encerramento do processo de regulação e liquidação do sinistro. Em sua origem, o PL 3.555/2004 propunha o prazo máximo de 90 dias para a seguradora executar os procedimentos de regulação e liquidação, contado da apresentação da reclamação pelo interessado, sujeito às suspensões eventualmente cabíveis pela necessidade de dilação probatória.
O PL 8.034/2010 reproduziu esse prazo de 90 dias e inseriu multa de 5% sobre o montante devido em caso de atraso, correção monetária, juros legais e indenização pela mora. O PL 8.290/2014 reduziu o prazo para 30 dias, o tempo regulamentar adotado pela Susep, mas estabeleceu um regime de decadência para o direito de recusar a cobertura pela companhia. No mais, manteve os 90 dias para executar os procedimentos de regulação e liquidação do sinistro.
Sempre pareceu confusa essa previsão de dois prazos simultâneos (30 e 90), sendo um deles de decadência. O PLC 29/2017, entretanto, complicou mais a situação. Separou o assunto em dois dispositivos, mas deixou o efeito suspensivo restrito ao prazo de 90 dias para regular e liquidar. O prazo de 30 dias ficou imune a qualquer espécie de interferência, o que representa uma extravagância dobrada.
Detalhe: essa decadência foi discretamente plantada em voto separado do deputado Eduardo Cunha, em 2014, sem anunciar nada a esse respeito. O regime não é comum nos sistemas estrangeiros, embora exista na Argentina. Mesmo lá, não há reconhecimento automático de cobertura no vencimento do prazo, mas sim na fase das diligências complementares solicitadas pela seguradora (Lei nº 17.418/67, artigo 56) [10].
Recentemente, um texto negociado junto ao governo manteve a decadência em 30 dias, passível de interrupção, e prazo maior a ser estabelecido pela Susep para sinistros complexos. Apesar disso, não tem aderência à nossa realidade, não faz parte da experiência cultural brasileira (comercial, contratual e regulatória) que sempre caminhou na direção contrária à decadência do direito de negar a cobertura.
O capítulo do resseguro é outro terreno cheio de problemas. Os projetos 3.555/2004 e 8.034/2010 não tratavam de prazo para o ressegurador avaliar a proposta da seguradora. Em 2014, o PL 8.290 começou a tocar nesse assunto, dizendo que o resseguro será formado segundo o mesmo regime de aceitação tácita aplicável ao contrato de seguro, na metade (sic) do prazo previsto no artigo 55 e seus parágrafos. Aqui, o artigo 55 estabelecia prazo máximo de 15 dias para recusa da proposta pela seguradora, sob pena de aceitação tácita. Logo, o prazo do ressegurador seria metade de 15. Além do caput, havia dez parágrafos falando de outros prazos. Impossível entender o que queria dizer o PL 8.290.
Veio então o PLC 29 colocando que o contrato de resseguro será formado segundo o mesmo regime de aceitação tácita aplicável ao contrato de seguro, no prazo de dez dias contados da recepção da proposta pela resseguradora. De novo: não tem aderência à nossa realidade. A doutrina classifica esse critério de “anômalo” e “extravagante” [11], contrário à prática de mercado regulada pela aceitação expressa [12], dada a complexidade da operação e o nível de responsabilidade assumido pelo ressegurador. Expoentes da indústria alertam para um reflexo perigoso junto ao mercado internacional.
Dias atrás, o acordo negociado com o governo trocou a expressão “aceitação tácita” pelo “silêncio do ressegurador no prazo de vinte dias“. Aumentou o prazo, mas piorou o mecanismo. Aceitação tácita é o comportamento concludente. O silêncio é a omissão completa do destinatário, a exemplo de uma mensagem eletrônica não respondida pelo ressegurador. Esse silêncio não pode ser equiparado à anuência, porque isso não representa os usos ou circunstâncias da prática nacional e internacional do resseguro, como exige o artigo 111 do CC.
Ainda nesse tema, outra figura perigosa. O PL 3.555/2004 dizia que a resseguradora não responde, em nenhum caso, perante o segurado e o beneficiário de seguro. Os projetos 8.034/2010, 8.290/2014 e 29/2017 flexibilizaram a regra, assinalando que, salvo disposição em contrário (fonte contratual ou legal?), a resseguradora não responde, com fundamento no negócio de resseguro, perante o segurado, o beneficiário ou prejudicado. Em 2014, o PL 8.290 emendou afirmando que é válido o pagamento feito diretamente pelo ressegurador ao segurado quando a seguradora se encontrar insolvente.
De fato, o resseguro é negócio estranho ao segurado, porque celebrado entre seguradora e ressegurador, mas tem hipóteses excepcionais que podem abrandar essa regra. Estas, por sua vez, estão definidas no artigo 14 da Lei Complementar nº 126/2007, que não se reduzem à situação genérica do estado de insolvência. Um conflito de normas à vista no horizonte.
Na sequência, o PLC 29/2017 assinala: “Demandada para revisão ou cumprimento do contrato de seguro que motivou a contratação de resseguro facultativo, a seguradora, no prazo da contestação, deverá promover a notificação judicial ou extrajudicial da resseguradora, comunicando-lhe o ajuizamento da causa, salvo disposição contratual em contrário“.
Dispositivo confuso e desnecessário. A lei não precisa regular esse dever de comunicação entre seguradora e ressegurador. O negócio formado entre eles já dispõe a respeito. Aliás, a parte final contradiz o caráter peremptório da proposição: “salvo disposição contratual em contrário“. O que seria isso? O contrato de resseguro pode mencionar que a seguradora não precisa comunicar o ressegurador no prazo de suas contestações? Sem sentido.
O projeto está exigindo da seguradora notificação judicial ou extrajudicial do ressegurador em toda e qualquer ação do segurado para revisão do contrato de seguro, ou para condenação da seguradora ao pagamento de indenização (capital segurado), se tiver resseguro facultativo. Pois bem. Se a companhia de seguros escolher a via judicial, qual será o efeito dessa notificação ao ressegurador? Dir-se-á que ele pode intervir na causa como assistente simples. Isso não dissolve a dúvida. Assistência simples é típica intervenção voluntária do terceiro que tem interesse jurídico na vitória de uma das partes (CPC, artigo 121). Logo, pode intervir apenas para auxiliar a seguradora, sem se tornar sujeito passivo da pretensão.
Outra coisa é a intervenção provocada do terceiro. Promover a notificação significa a seguradora pagar a taxa judiciária e requerer ao juiz que determine a expedição de carta ou mandado a ser entregue ao ressegurador. O que ele deve fazer então ao receber uma notificação judicial proveniente de ação indenizatória do segurado contra sua seguradora? Ficar quieto e correr o risco de ser tratado como litisconsorte por força de denunciação da lide ou chamamento ao processo?
A preocupação não é aleatória. Idêntica “obrigação” está projetada para o regime do cosseguro. No prazo de contestação, a cosseguradora-líder deve comunicar suas congêneres sobre a existência do cosseguro e promover a notificação judicial ou extrajudicial delas, de modo que a sentença contra a líder fará coisa julgada em relação às demais, que serão executadas nos mesmos autos (artigo 37). Saindo da projeção e voltando à vida real, o Código Civil estabelece que, ajuizada a ação do terceiro contra o segurado, este dará ciência da lide ao segurador (artigo 787, § 3º). O que significa essa “ciência”? O ministro Eduardo Ribeiro, assim que entrou em vigor, respondeu: “Ocorrendo, ou não, a intervenção, ficará vinculado ao desfecho da causa, não podendo questionar a correção do julgamento” [13].
Avançando um pouco mais, o descumprimento dessa “obrigação legal” gera a perda do direito da seguradora à recuperação ressecuritária? Essa foi uma pergunta do ministro Athos Gusmão Carneiro décadas atrás, já antevendo a celeuma montada em torno desse dispositivo no PL 3.555/2004 [14]. Afinal, ônus ou obrigação? Não se sabe. É outra fonte de litígios para mais 20 anos, a exemplo do rastro de controvérsia deixado pelo Decreto-Lei nº 73/66 sobre a posição processual do antigo Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), época do monopólio, entre litisconsórcio necessário, denunciação da lide e assistência litisconsorcial [15]. Um retrocesso voltar àquele cenário.
O PLC 29/2017 não representou uma evolução de equilíbrio frente ao PL 3.555/2004, ao menos nesses pontos. Pelo contrário. Desequilibrou mais os pratos da balança, o que reclama a intervenção independente do Senado, sob a lupa atenta das entidades e agentes do setor, para que não passem essas e outras extravagâncias. Que venham as audiências públicas e os trabalhos de revisão do Código Civil para as devidas adequações. A pressa é inimiga dos interesses transindividuais.
Fonte: ConJur
Disponivel em: https://www.conjur.com.br/2023-out-12/seguros-contemporaneos-contratos-seguro-projeto-lei-camara-292…