Afinal, um grupo econômico pode ou não recorrer à recuperação judicial?

O início deste ano trouxe um aumento no número de pedidos de recuperação judicial no país. Segundo o Indicador de Falências e Recuperações Judiciais mantido pela Serasa Experian, foram registrados em janeiro 92 solicitações — o que representa um incremento de 37,3% em comparação com o mesmo período de 2022. Em fevereiro, foram 103 requisições. Contudo, o que mais chama a atenção é o envolvimento de grandes grupos econômicos — como são os casos recentes das Americanas e Petrópolis, além do novo pedido apresentado pela Oi.

Diante desse cenário social-econômico, que coloca em dúvida a solidez e a estabilidade de conglomerados, a análise e a discussão sobre as nuances dos pedidos se efervescem, especialmente em razão da ausência de segurança das decisões judiciais — muitas vezes, causadas pelo pouco conhecimento dos atores envolvidos na solução dessas questões tão sensíveis à sobrevivência das empresas.

A temática que mais gera discussões, nesse contexto, diz respeito à possibilidade e à forma de processamento da recuperação judicial das várias sociedades empresárias do mesmo grupo. Isso porque elas possuem personalidades jurídicas próprias e, consequentemente, autonomia patrimonial entre si.

Por muito tempo, a Lei de Recuperação e Falências (11.101/05) foi omissa em relação ao processamento do pedido de recuperação judicial formulado por grupo econômico, o que deu nascimento à construção doutrinária e jurisprudencial sobre o tema. Entretanto, com a entrada em vigor da Lei 14.112/20, foram superadas algumas deficiências observadas no processo de recuperação judicial, a partir da positivação dos entendimentos já firmados pelos tribunais superiores.

Para fins de esclarecimento, grupo econômico nada mais é do que a reunião de sociedades empresárias distintas sob mesma direção — sem, contudo, ocorrer a perda das características individuais de cada sociedade. Assim, conservam suas personalidades jurídicas e, como consequência, seus patrimônios próprios e autônomos, ao invés de criarem uma personalidade jurídica nova. Os principais elementos dos grupos de sociedades empresárias são: a centralização da tomada de decisões e a independência jurídica das empresas membro, frutos da aquisição de personalidade jurídica. 

O fato é que, apesar de a Lei 11.101/05 estabelecer o regime de recuperação judicial da empresa, a redação do texto legal limitou sua aplicação aos empresários e às sociedades empresárias, não prevendo nenhuma hipótese de recuperação judicial do grupo econômico.

Assim, anteriormente à Lei 14.112/202, o processamento da recuperação judicial de um grupo empresarial só era possível por conta da aplicação subsidiária do Código de Processo Civil nos casos de omissão da lei. Isso porque o artigo 113 do CPC autoriza a formação de litisconsórcio ativo nos casos de: (1) comunhão de direitos ou de obrigações; (2) conexão de pedidos entre as causas ou (3) afinidade de questão fática ou jurídica. É o que se convencionou chamar de consolidação processual — que nada mais é do que a possibilidade de várias sociedades empresárias, integrantes de um grupo sob controle societário comum, se reunirem no mesmo processo para a realização dos atos processuais de maneira conjunta.

Foi através dessa interpretação sistemática, realizada tanto pela doutrina como pela jurisprudência, que surgiu o entendimento sobre a possibilidade de apresentação conjunta do pedido de recuperação judicial pelas empresas componentes de um mesmo grupo econômico — tendo, inclusive, utilizado o nome de consolidação processual, originado em função da tradução do conceito de procedural consolidation, adotado pelo direito norte-americano.

Em que pese não haver discordância da jurisprudência e da doutrina a respeito da possibilidade de litisconsórcio ativo na recuperação judicial de sociedades do mesmo grupo econômico — ou seja, consolidação processual — não há, contudo, aprofundamento do conhecimento acerca das consequências de seu deferimento. Isso acaba ocasionando, em alguns casos, a realização da chamada consolidação substancial, condição jurídica diversa da consolidação processual.

Também com origem norte-americana, ela é uma medida que flexibiliza o princípio da autonomia patrimonial das sociedades empresárias, ao passo que desconsidera que as empresas possuem patrimônios e credores distintos, para reunir os ativos e passivos das sociedades do grupo e consolidá-los em um só termo.

Ocorre, entretanto, que o fato de ser possível a apresentação conjunta do pedido de recuperação judicial pelas sociedades empresárias de um mesmo grupo econômico, não importa em unificação dos ativos e passivos das sociedades empresárias recuperandas. Da mesma forma, não autoriza as recuperandas a apresentarem um plano de recuperação unificado que reúna todos os credores. Ou seja, não há compartilhamento de direitos e obrigações das empresas quando há a simples consolidação processual.

A problemática da consolidação substancial está justamente no fato de que, por conta da falta de conhecimento específico, muitos advogados, juízes e operadores do direito acabam traçando um caminho equivocado nos processos de recuperação judicial apresentado por grupos econômicos, pois tendem a interpretar a consolidação substancial como consequência da consolidação processual, o que não é correto.

Após anos de lacuna legal, em razão de alteração no texto da Lei de Recuperação e Falências promovida pela Lei 14.112/20, a possibilidade de processamento e julgamento conjunto do pedido de recuperação judicial promovido por sociedades empresária de um mesmo grupo econômico — que antes era fruto de criação e interpretação doutrinária e jurisprudencial —, a partir de 2021, data da entrada em vigor da alteração legal, passou a ser direito expressamente previsto em Lei, em especial no artigo 69-G da Lei 11.101/05.

Pela redação do dispositivo legal inserido, restou corretamente estabelecida a necessidade de atendimento a certos requisitos formais para o processamento em conjunto do pedido de recuperação judicial, como a participação em grupo sob controle societário comum. Assim, é necessário que as sociedades empresárias demonstrem que realmente estão inseridas em uma estrutura de grupo, seja de fato ou de direito.

Nos casos de recuperação judicial de grupo de direito, a demonstração de cumprimento do requisito se limita à apresentação da convenção que deu origem ao grupo. Já no caso dos grupos de fato — que não possuem convenção para sua criação — a comprovação da relação entre as sociedades pode se dar pela demonstração de: (1) unidade administrativa; (2) existência de responsabilidades cruzadas; (3) identidade de sócios e/ou administradores; (4) compartilhamento de direitos e obrigações; e outros.

Sem prejuízo à demonstração da existência do grupo, para o deferimento da consolidação processual, é necessária ainda a demonstração do cumprimento dos requisitos estampados no artigo 48 da Lei 11.101/05, que estão ligados diretamente à legitimidade para pleitear a recuperação judicial. Ou seja, a demonstração (1) do exercício de atividade por mais de dois anos no momento do pedido; (2) não ser falido e, se tiver sido, que as responsabilidades daí decorrentes tenha sido declaradas extintas por sentença transitada em julgado; (3) não ter obtido recuperação judicial há menos de cinco anos; (4) não tenha sido condenada ou não tenha administrador condenado por qualquer dos crimes previstos na LRE.

Não obstante, além de terem de demonstrar o cumprimento dos requisitos anteriormente mencionados, as sociedades do grupo devem ainda juntar com a petição inicial os documentos previstos no artigo 51 da mesma norma legal, para que o magistrado possa averiguar o cumprimento das exigências por parte das recuperandas.

Ainda, a alteração da Lei de Recuperação e Falências tratou de forma expressa a possibilidade de consolidação substancial de ativos e passivos das sociedades empresárias integrantes do mesmo grupo econômico. Entretanto, nem tudo são flores quando se trata da atividade legislativa. Em razão da redação do referido dispositivo legal, surge nova discussão a respeito da aplicação da consolidação substancial. Apesar de ter previsto a possibilidade, ainda que excepcional, de consolidação substancial dos ativos e passivos dos integrantes do mesmo grupo econômico, o legislador acabou por retirar a autonomia da decisão das recuperandas e dos credores, transferindo-a ao juiz da causa — independentemente da realização de assembleia-geral de credores quando constatar a interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores.

Como já referido anteriormente, uma das principais características da formação dos grupos econômicos é justamente a manutenção da autonomia jurídica e patrimonial das sociedades componentes do grupamento. Em razão disso, não se justifica a presunção de necessidade de reunião de credores, ativos e passivos em uma só lista ou um só plano de recuperação sem análise do caso concreto.

É por isso que a atenção deve ser voltada para a forma pela qual a recuperação é tratada no caso concreto. Nada impede a unificação dos ativos, passivos e credores em um só plano de recuperação que trate do pagamento das dívidas de maneira unificada. Tal medida deve ser aplicada de forma excepcional e depende da avaliação do caso concreto.

A crítica é justamente ao fato de o dispositivo legal transferir ao magistrado a decisão da consolidação substancial da recuperação judicial, quando ela deve estar diretamente ligada à vontade ou interesse dos credores e das recuperandas, como acontece no direito norte-americano, de onde os conceitos foram importados. A consolidação substancial deve ser aplicada nos casos em que a relação entre as sociedades é tão complexa que a reestruturação individualizada das sociedades causaria prejuízos maiores do que a recuperação do grupo como um todo. 

Assim, a consolidação substancial tem por objetivo a busca de uma solução mais justa à situação de crise enfrentada pelo grupo. Em qualquer hipótese, é preciso garantir o equilíbrio entre os interesses dos credores em sua totalidade — mesmo que seja contrário ao interesse individual de cada credor — e os interesses das recuperandas, observando os princípios da paridade de tratamento dos credores e da preservação da empresa.

Por fim, uma vez decidido pela consolidação substancial, o processo de recuperação judicial do grupo econômico assume contornos semelhantes aos processos de recuperação de uma sociedade individual, com a consequente votação do plano de recuperação judicial pela assembleia de credores, que pode aprová-lo ou reprová-lo, conforme atendimento de seus interesses.

Fonte: Conjur

Disponivel em :https://www.conjur.com.br/2023-abr-14/fernando-machado-grupo-economico-recorrer-rj

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