Inteligência artificial e a capacidade de ser parte em demandas judiciais

Nos últimos anos o número de ações judiciais propostas tendo como autores animais não humanos cresceu de forma nunca vista. No entanto, na imensa maioria dessas ações, os magistrados, em geral, ou determinaram a emenda à inicial para que fosse realizada a adequação do polo ativo ou tomaram medidas mais drásticas e optaram por extinguir os processos sem a resolução do mérito, por julgarem que aqueles que ocupavam o polo ativo não possuíam capacidade para serem partes em processos.

Em setembro de 2021, a 7ª Câmara Cível do TJ-PR (Tribunal de Justiça do do Paraná) proferiu uma decisão paradigmática ao julgar um agravo de instrumento em que se discutia a capacidade de animais não humanos serem parte em demandas judiciais, ou seja, se poderiam animais não humanos figurar no polo ativo de uma lide [1].

Naquele caso, o TJ-PR entendeu, por unanimidade de votos, que os animais podem figurar como parte em demanda judicial, desde que devidamente representados. Dentre as fundamentações apresentadas no acórdão, o relator indicou em seu voto que o artigo 5º, XXXV, da CRFB/88, consagra o princípio da inafastabilidade da jurisdição, de modo que “todo titular de direitos substantivos tem capacidade de ser parte em processo judicial, sem o que a garantia de acesso à justiça seria ineficaz e sem utilidade prática”.

A conclusão a que se chega após a leitura do acórdão é que prevaleceu o entendimento de que se deve garantir o acesso à justiça de todo sujeito de direito, com base nos direitos fundamentais dos humanos, os quais podem ter sua proteção ampliada para os animais não humanos pois estes não são coisas, mas sim sujeitos de direito não humanos [2].

O caso narrado abre uma série de possibilidades no que diz respeito ao ajuizamento de demandas por sujeitos diferentes dos humanos. Com o constante progresso tecnológico, existem hoje as chamadas inteligência artificial (IA), que não muito tempo atrás eram vistas como um elemento restrito à ficção. As IAs, como também são chamadas, “são um ramo da ciência da computação que se propõe a desenvolver sistemas que simulem a capacidade humana na percepção de um problema, identificando seus componentes e, com isso, resolver problemas e propor/tomar decisões” [3].

Uma segunda definição de IA indica que seria a criação de sistemas inteligentes de computação capazes de realizar tarefas sem receber instruções diretas de humanos, pois utilizando diferentes algoritmos e estratégias de tomada de decisão em conjunto a um grande volume de dados, sistemas de IA são capazes de propor ações a serem realizadas, quando solicitados.

É inegável que, atualmente, a IA é um fator de alta relevância na transformação da vida humana. As IAs estão presentes, por exemplo, nos transportes, nos sistemas de comunicação automatizados, até mesmo na automação de serviços financeiros e bancários. Assim, tendo sido reconhecido pela jurisprudência que se deve garantir o acesso à justiça de todo sujeito de direito, seriam as IAs abraçadas por essa garantia? Em outras palavras, poderia uma Inteligência Artificial ser vista como sujeito de direito e vir a ser parte em uma ação judicial?

Primeiro, importa relembrar que para que exista um processo existem “condições mínimas” que devem estar presentes, pois sem elas não se pode dizer que se está perante um processo. Conforme ensina Alexandre Freitas Câmara, “a instauração e regular desenvolvimento do processo dependem do preenchimento de alguns requisitos, conhecidos como pressupostos processuais” [4].

São pressupostos processuais um juízo investido de jurisdição, partes capazes e uma demanda regularmente formulada. Como a reflexão a que se propõe o presente artigo está relacionada somente ao pressuposto processual de partes capazes, os outros dois não serão abordados.

Para que se tenha um processo, ou seja, para que ele exista, é preciso que ele tenha primeiro, pelo menos duas partes. Portanto, a regra geral é que haja sempre ao menos duas partes, uma que demanda e a outra que é demandada. Existem casos excepcionais em que o processo existe apenas com uma parte, porém, estes casos precisam estar previstos em lei. Havendo partes, ainda é necessário que estas sejam capazes para que assim o processo possa se desenvolver normalmente. Para que isso ocorra, as partes precisam ser dotadas de capacidade processual.

Segundo a doutrina pátria, a capacidade processual é uma tríplice capacidade, ou seja, ela é a capacidade de ser parte, a capacidade para estar em juízo e a capacidade postulatória. Possuem capacidade de ser parte as pessoas naturais, as pessoas jurídicas e os chamados “entres formais”, entes despersonalizados que possuem capacidade de ser parte por força de determinação legal. Além disso, segundo Fredie Didier Jr., “a capacidade de ser parte decorre da garantia da inafastabilidade do Poder Judiciário, prevista no inciso XXXV do artigo 5º da CF/88” [5].

Verificado que demandante e demandado possuem capacidade de ser parte deve-se verificar se está presente a capacidade de estar em juízo. Nesse ponto, o artigo 70 do CPC/15 dispõe que “toda pessoa que se encontre no exercício de seus direitos tem capacidade para estar em juízo”.

Assim, para que se possa estar em juízo, deve ser o sujeito ser titular de direitos. Ainda sobre essa capacidade, Marcos Vinicius Furtado Coêlho sustenta que “a capacidade de estar em juízo equivale a uma aptidão de pessoa natural ou jurídica (de direito público ou privado) para atuar numa demanda processual — seja no polo ativo (autor) ou no polo passivo (réu)” [6].

O último elemento a ser analisado para se poder afirmar que o pressuposto processual das partes capazes está presente é terem as partes a chamada capacidade postulatória. Entende-se por capacidade postulatória a possibilidade de dirigir petições ao órgão jurisdicional. Em relação a esse elemento, o artigo 103 [7] do CPC/15 estabelece que a regra geral é as partes serem representadas em juízo por advogado.

Considerando que a capacidade postulatória se resolve em razão de ser exigido por lei a representação em juízo por um advogado, importa refletir se as Inteligências Artificiais seriam dotas de capacidade de serem parte e capacidade de estarem em juízo, assim como foi reconhecido no caso dos animais.

No tocante a esses dois elementos, temos que a capacidade de estar em juízo, ou apenas capacidade processual, não é um desdobramento da capacidade de ser parte, pois existem casos, como os envolvendo incapazes e nascituros, em que os sujeitos possuem capacidade de ser parte, mas não possuem a capacidade de estar em juízo.

Sobre a capacidade exigida para que uma pessoa possa estar em juízo, Furtado Coêlho ensina que ela é “a mesma requerida para a realização dos atos da vida civil, isto é, para a prática dos atos jurídicos de direito material” [8] Dessa maneira, evidencia-se a relação entre a capacidade processual e o conceito de capacidade civil.

Como se sabe, de acordo com o CC/02 a capacidade civil se divide em capacidade de direito e capacidade de fato. “A capacidade de direito consiste na aptidão de se adquirir direitos e o exercer em sociedade” [9]. Por outro lado, “a capacidade de fato representa a competência para exercer a capacidade de direito, de forma completa ou incompleta, ou seja, uma pessoa com capacidade de fato incompleta não está apta a exercer todas as atividades da vida civil sem auxílio”.

Dispõe o artigo 5º do CC/02 que “a menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil”, ou seja, a capacidade civil é adquirida quando o sujeito completa 18 anos de idade, salvo se houver algum dos casos previstos em lei para o reconhecimento de incapacidade para exercer os atos civis. No entanto, a regra é flexibilizada para as pessoas jurídicas e para os “entes formais”, pois estes adquirem sua capacidade com o registro de seus atos constitutivos, no caso das pessoas jurídicas, ou desde a sua criação, no caso dos entes. A conclusão a que se chega frente ao exposto é que caso se demonstre que as IAs são dotadas de capacidade civil, consequentemente, elas também seriam dotadas de capacidade processual.

No entanto, o ordenamento jurídico brasileiro ainda está restrito às pessoas naturais, pessoas jurídicas e “entes formais”. Não foi por acaso que a decisão proferida pelo TJ-PR envolvendo animais foi paradigmática. Por outro lado, enquanto se vê um avanço em relação aos animais não humanos, o mesmo ainda não pode ser dito em relação às IAs.

Por se tratar de tema ainda em estado embrionário no Brasil, de modo que os trabalhos que já se debruçaram sobre a questão ainda estão longe de uma solução, podemos voltar os olhos para o que se fala em outros ordenamentos jurídicos em busca de possíveis caminhos.

Um exemplo de ordenamento jurídico que já possui um entendimento mais amplo no que diz respeito ao reconhecimento de quem pode ser titular de direitos e possui capacidade civil e, consequentemente, capacidade processual, é o caso da Polônia. De acordo com o Código Civil Polonês, possuem personalidade jurídica: 1) as pessoas físicas [10], ou seja, os seres humanos; 2) as pessoas jurídicas [11], que segundo o texto legal são o Tesouro do Estado e as “entidades organizacionais” que possuem personalidade jurídica a partir de previsão legal; 3) as “pessoas jurídicas defeituosas” [12], que são “entidades organizacionais” que não são pessoas jurídicas mas possuem capacidade legal por força de um estatuto; e 4) outras entidades, ou seja, aquelas que não vistas como um tipo de pessoa, mas são dotadas de alguns direitos e responsabilidades.

Os animais se encontram nesse último grupo, pois são considerados como entidades vivas, mas não coisas ou pessoas. Além disso, reconhece-se que eles são capazes de sentir dor e têm direito a respeito, proteção e cuidado [13].

Outros dois exemplos que devem ser considerados são os casos dos rios Whanganui [14] e Ganges [15], localizados na Nova Zelândia e na Índia, respectivamente. Nos dois países, as autoridades competentes optaram por conceder personalidade jurídica para os rios, de modo que estes terão sua própria identidade jurídica, com todos os direitos e deveres correspondentes, podendo até mesmo ter seus interesses defendidos em processo judicial por um advogado.

A partir dos exemplos apresentados, vemos que é possível criar uma relação, ainda que por meio de analogia, entre o que já se estabeleceu em outros países no que diz respeito ao reconhecimento de capacidade civil e personalidade jurídica para seres diferentes dos seres humanos. Nesse sentido, a literatura normalmente adota duas analogias para discutir a possibilidade de se reconhecer a personalidade jurídica das IAs: uma entre os sistemas de IA e os animais e a outra entre esses mesmos sistemas e as pessoas jurídicas [16].

Em relação à analogia com as pessoas jurídicas, essa ocorre pois ambos são criações artificiais do ser humano, sendo elas carentes de sensações e consciência. Por outro lado, há quem defenda que a analogia envolvendo os animais seria mais adequada, pois as habilidades das IAs são limitadas em relação aos seres humanos. Além disso, deve-se reconhecer que a subjetividade jurídica na forma reconhecida a um ser humano é única e não poderia ser reconhecida em favor de uma IA, principalmente porque a IA não demonstra evidências de ser consciente e senciente [17].

Considerando que não é uma novidade para o Direito a determinação de capacidade civil e de capacidade jurídica para figuras não humanas, como rios e animais, entendo que o próximo passo a ser dado pode ser no sentido de reconhecer estes dois elementos em favor das IAs. Porém, ainda não está claro como podemos imputar personalidade jurídica às IAs.

Nesse sentido, há quem defenda que o legislador poderia criar um novo tipo de pessoa jurídica específico para a IA em razão do nível de desenvolvimento tecnológico dessa figura. Além disso, os conceitos legais de responsabilidade civil que temos hoje no Brasil não são os mais adequados porque deve-se pensar em como controlar as IAs para que elas não interfiram nos direitos de terceiros e como garantir que os danos causados por esses sistemas sejam compensados [18].

Em suma, é inegável que ainda são necessárias alterações em nossa legislação civil para que se tenha o reconhecimento de personalidade jurídica e de capacidade civil para as IAs. Da mesma forma, por elas ainda não poderem ser doadas de capacidade civil, a consequência lógica a que se chega é que elas ainda não estão aptas para possuir capacidade processual. Mas, com o desenvolvimento da questão, espera-se que no futuro as IAs venham a ocupar os polos ativo e passivo de demandas judiciais.

Fonte: ConJur
Disponivel em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-06/freitas-camara-ia-capacidade-parte-demandas-judiciais

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