A viatura foi chegando devagar
E de repente, de repente resolveu me parar
Um dos caras saiu de lá de dentro
Já dizendo, aí compadre, você perdeu
Se eu tiver que procurar você ‘tá fudido
Acho melhor você ir deixando esse flagrante comigo (…)
De geração em geração
Todos no bairro já conhecem essa lição
Era só mais uma dura
Resquício da ditadura
Mostrando a mentalidade de quem se sente
Autoridade neste tribunal de rua
(Marcelo Yuka, O Rappa, 1999)
Não são poucos os casos que viralizam nas redes sociais e na imprensa tradicional envolvendo a abordagem policial a pessoas negras no Brasil.
Em 3 de setembro de 2020, o violoncelista negro Luiz Justino tomou uma “dura” da polícia em Niterói e acabou sendo preso injustamente. Em 29 de junho de 2021, o ciclista negro Filipe Ferreira Oliveira tomou uma “dura” quando fazia manobras em um parque na Cidade Ocidental (GO), tendo sido submetido à mira de arma de fogo e humilhado.
Na cidade de Guarapari (ES), em 25 de novembro de 2021, uma senhora preta foi abordada e submetida a chutes, socos e tapa. Já em Itabira (MG), em 5 de novembro de 2021, dois PMs, com violência, abordaram uma mulher negra com o bebê no colo, tendo sido derrubada e imobilizada com o joelho do policial em seu pescoço. Em 17 de novembro de 2021, o influenciador e produtor cultural negro Júlio Dantas foi detido e conduzido à delegacia no Centro do Rio de Janeiro.
Como se vê, nas capitais e no interior, por todo o Brasil, colecionam-se cenas dantescas, protagonizadas por policiais militares e, às vezes, até seguranças privados, de um lado e pessoas negras de outro, submetidas a toda sorte de crueldade, violência, traumas e humilhações.
Essas abordagens levadas ao extremo produzem até a morte, como no caso de George Floyd, afro-americano assassinado em 25 de maio de 2020 por um policial de Minneapolis.
No Brasil, na véspera do Dia da Consciência Negra (em 19 de novembro de 2021), João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, foi morto no Supermercado Carrefour em Porto Alegre (RS). Tudo começou com uma abordagem de seguranças privados.
Por que as abordagens policiais não possuem um regramento legal consistente? Porque é um instrumento policial estatal dirigido a pessoas negras!
Em 1999 o músico Marcelo Yuka, do grupo O Rappa, já denunciava: “De geração em geração / todos do bairro já conhecem essa lição (…) / era só mais uma dura / resquício de ditadura / mostrando a mentalidade / de quem se sente autoridade / nesse tribunal de rua”.
Vinte e quatro anos depois, o Supremo Tribunal Federal, através do Habeas Corpus 208.240, vai decidir se as “duras policiais” realizadas com base na cor da pele são válidas.
O tema é levado ao STF porque Francisco Cicero foi abordado pela polícia, pois o agente policial “avistou ao longe um indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico de drogas, uma vez que ele estava em pé junto o meio fio da via pública e um veículo estava parado”. A resolução desse caso é simples. Um jovem loiro, parado perto de um veículo branco, na rua Dias Ferreira no Leblon, seria parado? A toda evidência não. Como diz Emicida, existe pele alva e pele alvo. A cor da pele, lamentavelmente, é determinante nas abordagens policiais.
Esse imbricamento do tema com a questão racial não é algo exclusivo e atual do Brasil. O problema da filtragem racial na prática da stop and frisk não passou ao largo das cortes americanas, como se vê no final da década de 1960, quando se julgou o caso Terry v. Ohio, 392 U.S. 14-15 (1968). Na ocasião, a National Association for the Advancement of Colored People (Naacp) habilitou-se como amicus curiae e argumentou que a admissão da prática de detenções e buscas sem causa provável teria duros reflexos para a população negra do país, que já era vítima de abordagens abusivas. A corte concordou com a premissa fática apresentada pelo Naacp, no sentido de que as polícias frequentemente discriminam as minorias raciais, em especial os negros [1].
No Brasil, pesquisas empíricas mostram que as abordagens a pessoas a pé, na rua e no transporte público, têm por alvo preferencial a juventude negra (pretos e pardos) [2].
Qualquer desejo relativo a uma sociedade igualitária, justa e plural passa necessariamente por trazer para o campo da legalidade as abordagens policiais, limitando o arbítrio estatal. O poder de polícia não é um cheque em branco imune a qualquer controle.
O caso de Francisco ainda é singelo, já que ele estava com ínfima quantidade de drogas (1,53g), mas ainda assim, na primeira instância, “ganhou” sete anos e 11 meses de prisão, o que foi reformado pelo Superior Tribunal de Justiça para dois anos e 11 meses. Contudo, um dos ministros do STJ apresentou dois argumentos para absolver totalmente Francisco. 1º) a ínfima quantidade de droga remete à insignificância jurídica; 2º) uma abordagem a partir do racismo invalida toda a prova daí derivada.
A dificuldade de enfrentar o racismo no Brasil se deve em muito porque não se quer enxergá-lo, não raro se nega sua existência e usa-se todo tipo de refúgio argumentativo para dizer que atitudes racistas não são racistas. Cada um vê o que quer.
Agora, ao julgar esse tema, o STF não irá apenas decidir se as provas produzidas a partir de uma abordagem policial racista são validas ou não, ele estará dando um recado sobre qual o tipo de polícia o Estado brasileiro terá: uma polícia racista ou um modelo de polícia cidadã. Ao fim e ao cabo, o STF demonstrará se está alinhado ou não com os novos anseios de uma sociedade antirracista e plural. O resultado do julgamento poderá ser um estímulo e agigantamento de prática policial inaceitável ou um importante aviso aos órgãos de segurança de que “vidas negras importam”.
Fonte: ConJur
Disponivel em : https://www.conjur.com.br/2023-mar-12/andre-nicolitt-supremo-julgamento-hc-208240-sp