A juíza Andréa Galhardo Palma, da 2ª Vara Regional Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem de São Paulo, concedeu, em caráter liminar, a recuperação judicial ao Instituto Nacional de Assistência Integral (Inai), uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que atua em áreas como educação, saúde, ciência e tecnologia.
No pedido de recuperação, o Inai alegou que a crise financeira que acomete a associação seria decorrente do inadimplemento, por parte do governo do Pará, de três contratos de gestão vinculados a hospitais de campanha, no ano de 2020, no auge da crise da Covid-19. Além disso, afirmou que, embora seja uma associação civil sob a ótica formal, substancialmente configura-se como empresa.
Em uma análise inicial do caso, a magistrada ressaltou que a associação não se enquadraria nas hipóteses previstas no artigo 1º da Lei 11.101/2005, que estabelece quais empresas têm direito ao requerimento da recuperação judicial.
“Desse modo, para a presente verificação sobre a probabilidade do direito de deferimento dos pleitos formulados na exordial, é necessária a realização de uma revisão da evolução do entendimento jurisprudencial acerca da utilização do instituto da recuperação judicial por associações privadas prestadores de serviços de relevância social”, disse.
Originalmente, afirmou Palma, havia o entendimento no TJ-SP de que associações sem fins lucrativos, independentemente da atividade econômica realizada, não possuíam legitimidade ativa para pedir a recuperação judicial. Porém, na visão da juíza, a situação mudou com a crise da Covid-19, que teve grande impacto na economia brasileira.
“Situação mais grave recai sobre os agentes econômicos prestadores de serviços ligados à saúde. Diante disso, imperativo se faz que o Poder Judiciário tenha uma maior sensibilidade na análise dos pedidos recuperatórios, sobretudo para conformação das decisões ao princípio da preservação da empresa estatuído no artigo 170, III, CF, e no artigo 47 da Lei 11.101/2005, e dos benefícios econômicos e sociais decorrentes.”
Conforme a magistrada, é justamente esse posicionamento que vem se consolidando na jurisprudência. Ela destacou o número crescente de processamentos de recuperações judiciais de associações civis sem fins lucrativos que prestam serviços de relevância econômica e social, como é o caso do Inai. Como exemplo, Palma citou a recuperação do Hospital Evangélico da Bahia.
“Para além dos casos envolvendo organizações civis voltadas à prestação de serviços médico-hospitalares, nota-se a consolidação da jurisprudência pátria no sentido de deferir, de forma excepcional e justificada, o processamento de associações civis sem fins lucrativos que possuem relevante atuação em segmentos como a educação”, completou a juíza, citando as recuperações do Instituto Metodista de Educação e do Instituto Cândido Mendes.
No caso concreto, Palma falou em “nítidas semelhanças” com os precedentes, a revelar a probabilidade do direito do Inai de efetuar o pedido de recuperação judicial, bem como a excepcionalidade de não se exigir o registro formal na junta comercial.
“A despeito de não possuir registro mercantil, a associação requerente exerce atividade econômica organizada para a produção e circulação de bens ou serviços para o mercado, sendo responsável pela geração direta e indireta de empregos e tributos. A associação despenha, portanto, inequívoca atividade empresária, a teor do que dispõem os artigos 966 e 982 do Código Civil”, explicou Palma.
Situação excepcional
Desse modo, prosseguiu a juíza, o pedido não deveria ser analisado sob a “ótica estritamente formalista” da natureza jurídica do agente econômico, e deveria prevalecer, para fins da aplicação da Lei 11.101/2005, a efetiva atividade desempenhada pela pessoa jurídica requerente, em respeito ao princípio da preservação da empresa.
“A situação concreta subjudice trata-se de nítido caso excepcional. O cenário apresentado impõe, assim, uma mitigação, dentro dos limites constitucionais, dos dispositivos legais que vedam a recuperação judicial de entidade que, apesar de formalmente não ser registrada como empresa, exerce atividades tipicamente empresárias”, afirmou.
Ainda segundo a magistrada, o Inai preencheu todos os requisitos legais para requerimento da recuperação judicial, conforme o artigo 48 da Lei 11.101/2005, e a inicial e a emenda foram instruídas nos termos exigidos pelo artigo 51 da mesma legislação.
“Há risco de dano no indeferimento liminar do pedido, pois, no caso concreto, como já amplamente destacado na presente decisão, a requerente desempenha importante função social e econômica, como fonte geradora de riquezas, tributos e empregos. Contudo, encontra-se em elevado grau de endividamento, com o passivo estimado de cerca de R$ 17.164.799,86”, finalizou.
Jurisprudência dividida
Para o professor da USP (Universidade de São Paulo), advogado e especialista em recuperação judicial, Oreste Laspro, a doutrina e a jurisprudência estão divididas em relação ao cabimento da recuperação para associações civis sem fins lucrativos, pois, embora sejam agentes econômicos, com atividade organizada, geração de empregos e pagamento de tributos, não se adequam à literalidade do artigo 1º da Lei de Recuperação Judicial.
“É inequívoco que, especialmente a partir da crise da Covid-19, há uma tendência de alguns tribunais, em caráter excepcional, admitir a recuperação judicial nessa hipótese, em especial em áreas relevantes como saúde e educação. Por ora, as Câmaras Especializadas do TJ-SP se posicionaram em sentido contrário, mas a questão ainda não foi decidida pelo STJ [Superior Tribunal de Justiça], portanto, estamos longe da pacificação do tema”, disse.
Fonte: ConJur
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-21/juiza-concede-recuperacao-judicial-associacao-fins-lucrativos